Uma regra incluída na proposta de revogação do Código Florestal pelos
ruralistas, sob o argumento de proteger a agricultura familiar, deve beneficiar
grandes e médios produtores rurais.
Aprovado no dia 24/5 pela Câmara, o projeto isenta a recuperação de áreas de
RL (Reserva Legal) desmatadas até julho de 2008 em propriedades com até quatro
módulos fiscais (de 20 a 440 hectares, dependendo da região).
Na prática, quem tem mais terra poderá ser anistiado porque é comum que
imóveis rurais estejam registrados no cartório com mais de uma matrícula, como
se fossem propriedades diferentes, apesar de serem explorados em uma única área
contínua. Uma fazenda de 800 hectares pode corresponder, na verdade, a duas
matrículas de 400 hectares.
A precariedade da fiscalização e da gestão de informações fundiárias, além de
dúvidas sobre quais dessas informações deverão ser consideradas e como elas
serão registradas, devem dificultar a aplicação da nova lei, provocando
insegurança jurídica, caso o texto aprovado pelos deputados não seja vetado.

Mais de 90% dos 5,1 milhões imóveis rurais do País tem até quatro módulos
fiscais, de acordo com o SNCR (Sistema Nacional de Cadastro Rural). A extensão
dessas propriedades, no entanto, alcança 24% da área total dos imóveis ou 135
milhões de hectares.
A RL existe no país e sua conservação pelo proprietário é obrigatória desde o
primeiro Código Florestal, de 1934. Ela é a parte da propriedade que não pode
ser desmatada, excetuada a APP (Área de Preservação Permanente). Segundo o atual
Código Florestal, é destinada ao “uso sustentável dos recursos naturais, à
conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da
biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas”.
A reserva deve ter 20% do imóvel na Mata Atlântica, Cerrado (exceto na
Amazônia), Caatinga, Pantanal e Pampa. Na Amazônia Legal, os índices são de 35%
(Cerrado) e de 80% (floresta).
Justiça social
A bancada ruralista argumenta que a anistia é uma medida de justiça social
porque agricultores familiares e pequenos produtores não teriam terra suficiente
para produzir e preservar ao mesmo tempo.
“Se de fato defendessem a agricultura familiar, tinham feito a distinção
entre agricultura familiar e agricultura patronal [na proposta aprovada]”,
contrapõe Rosicléia Santos, secretária de Meio Ambiente da Contag (Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura).
Ela defende que a nova legislação vincule explicitamente qualquer benefício à
Lei 11.326/2006, que regulamenta a agricultura familiar.
Os representantes do agronegócio, no entanto, nunca aceitaram limitar a
anistia ao setor. O texto final aprovado pela Câmara faz menção à Lei
11.326/2006, mas permite generalizar o benefício ao manter o critério do tamanho
da terra.
Segundo essa lei, agricultor familiar é aquele que tem um único imóvel de até
quatro módulos, de onde tira seu sustento, usando sua própria força de trabalho
e a da família.
“Poderia haver tratamentos diferenciados no Código Florestal, mas isso não
justifica o discurso de anistia ou de benefícios para os grandes, que na
realidade é o que este projeto traz”, critica Luiz Zarref, da Via Campesina e do
MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Zarref classifica a isenção das RLs como “tiro no pé” por causa da
importância dessas áreas para a própria produção agropecuária. “A RL tem papel
ecológico importante na pequena propriedade, de segurar o solo, de manter
predadores naturais para a lavoura, manter o ciclo hídrico e tem importância na
geração de renda”, argumenta.
Matrículas
A divisão de um imóvel em mais de uma matrícula ocorre por vários motivos.
Muitos produtores rurais, quando compram uma nova propriedade, preferem não
arcar com os custos cartoriais de reunir matrículas.
Formalizar a ampliação de uma propriedade também pode ser desvantajoso por
torná-la alvo da reforma agrária mais facilmente. Às vezes, também é conveniente
manter o patrimônio dividido para evitar riscos envolvidos em hipotecas,
penhoras ou disputas por herança.
“[A divisão em mais de uma matrícula] é comum tanto em grandes propriedades
quanto em pequenas”, afirma Gilmar do Amaral, da Coordenação do Cadastro
Nacional de Imóveis Rurais do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária). Ele diz que o número de matrículas é “infinitamente maior” do que o de
imóveis registrados no órgão.
Todo produtor rural é obrigado por lei a cadastrar sua propriedade no Incra.
Depois disso, ele recebe o CCIR (Certificado de Cadastro de Imóvel Rural),
documento necessário para obtenção de crédito, transações imobiliárias,
bancárias e comerciais.
O cadastro possui informações sobre matrículas, mas o CCIR diz respeito a
toda a área explorada pelo produtor rural, que é o responsável pelas informações
enviadas ao órgão fundiário.
Além do cadastro do Incra, há outros bancos de dados fundiários no País, mas
eles não estão unificados. Amaral confirma que costuma haver divergência entre
eles. Para comprovar todo o patrimônio de um proprietário seria preciso fazer um
cruzamento complexo e trabalhoso das informações recolhidas pelo Incra, Receita
Federal, órgãos ambientais, bancos e cartórios.
Os sistemas estaduais de licenciamento ambiental e cadastramento rural
seguem, em geral, o mesmo princípio, considerando a área de todo imóvel e não a
das matrículas. Eles têm de confiar na informação apresentada pelo proprietário,
pois não têm condições de checá-la em campo.
A proposta referendada pela Câmara deixa dúvidas sobre qual categoria deverá
ser considerada para o cálculo da RL das propriedades (matrícula, "imóvel" ou
outra), de acordo com José Héder Benatti, diretor adjunto do Instituto de
Ciências Jurídicas da UFPA (Universidade Federal do Pará) e ex-presidente do
Iterpa (Instituto de Terras do Pará). Ele avalia que o projeto trará insegurança
jurídica e prevê disputas judiciais sobre o assunto.
“Na nova lei, será considerada a lógica de exploração econômica ou o que está
registrado no cartório?”, questiona. “Pode ser aberta uma brecha para discussão
e a lei pode não ser implementada porque vai se discutir se é o órgão ambiental
que vai determinar [a área sobre a qual será calculada a RL]. Ou o proprietário
dirá qual é essa área e encaminhará a informação para o órgão?”
O pesquisador e professor lembra que há jurisprudência do STF (Supremo
Tribunal Federal) determinando que, para efeito de desapropriação de reforma
agrária, por exemplo, deve ser considerada a área do imóvel rural, e não a das
matrículas.
O artigo 67º do projeto aprovado pelos deputados especifica que a anistia de
recuperação de RL é destinada a “imóveis rurais” que tinham, até 22 de julho de
2008, quatro módulos fiscais. Trata-se da mesma denominação usada pelo
Incra.
A legislação obriga unificar matrículas, mas não prevê punições para quem
deixa de fazê-lo. No projeto aprovado pela Câmara, também não há penalidade para
quem ludibriar os órgãos ambientais com informações incorretas.
Confusão
“Outro efeito negativo da anistia para imóveis de até quatro módulos é que
ela vai gerar confusão em campo, já que os tamanhos dos módulos mudam de
município para município”, adverte Raul do Valle, coordenador adjunto de
Política e Direito Socioambiental do ISA. “Com isso, e sem contar a
possibilidade de fraude, proprietários em situações idênticas, na mesma região,
estarão em situações jurídicas diferentes”, afirma.
Ele dá o exemplo de uma propriedade rural de 100 hectares, cuja RL esteja
desmatada. O proprietário estará isento de recuperar a área se ela estiver em
Tietê, mas será obrigado a recuperar ou compensar 20 hectares se ela estiver em
Piracicaba, ambos municípios na mesma região de São Paulo e a menos de 50 km de
distância um do outro.
Valle confirma que situações como essa, que serão criadas caso o projeto não
seja vetado pela presidenta Dilma Rousseff, dificultarão a compreensão das
regras, aumentando a insegurança jurídica (leia mais).
Estudo do Ipea
Quase 30 milhões de hectares desmatados em RL podem deixar de ser recuperados
só pelo dispositivo da anistia para até quatro módulos fiscais, aponta pesquisa
do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) (acesse
o documento na íntegra).
Apesar de a maior parte dessas terras estar na Amazônia, o percentual do
passivo que pode ser anistiado em relação ao passivo total de RL é maior em
biomas mais ameaçados. Na Caatinga e na Mata Atlântica, mais da metade dos
passivos poderão ser perdoados. No Cerrado, o índice é de 22% (veja gráfico
abaixo).
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Fonte: "Código Florestal:
implicações do PL 1876/99 nas áreas de Reserva Legal". Ipea, 8/6/2011.
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Restam apenas 7% da cobertura vegetal original da Mata Atlântica. Quase
metade do Cerrado e da Caatinga já foi desmatada.
O estudo lembra que, apesar da extensão total de UCs (unidades de
conservação) ser pequena nessas regiões, a ocupação é antiga e consolidada, o
que dificulta a criação de novas áreas desse tipo.
“Em biomas onde a área ocupada por UCs não representa uma parcela
significativa e não existe área física suficiente para a criação de novas UCs,
as reservas legais são necessárias e essenciais para a conservação da
biodiversidade. É o caso dos dois hotspots da biodiversidade existentes no
Brasil, Cerrado e Mata Atlântica”, aponta o documento.
“No Cerrado, estima-se que o passivo a ser anistiado pelo PL 1.896/99
represente 3,1 milhões de hectares. Esse valor representa 46% da área do total
de UCs Federais existentes no bioma, portanto importante para a conservação, se
for recuperado. Na Mata Atlântica, o valor de passivo é de aproximadamente 3,9
milhões de hectares, enquanto a área de UCs Federais é de 3,6 milhões, logo, o
passivo é maior que as áreas protegidas pela União na Mata Atlântica”, afirma a
pesquisa.
A isenção de recuperação de RL em todo país, no entanto, pode ser bem maior
que os 30 milhões de hectares porque a proposta aprovada pela Câmara prevê
vários outros dispositivos de anistia.
Fonte: http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=3548 |
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